Em 2019 seria impensável que uma estação de televisão generalista tomasse a decisão de programar, a um domingo e em pleno horário nobre, um telefilme perturbador sobre as consequências de um hipotético holocausto nuclear em solo nacional.

Mas foi o que aconteceu às nove e meia da noite de 23 de Setembro de 1984, quando Threads passou pela primeira vez na BBC Two. A assombrosa ficção levou a que se gerasse um intenso debate sobre a recriação tão detalhada apresentada pelo filme. O público britânico não conseguiu dormir sobre o assunto. E mais impressionante ainda é terem passado 35 anos e sentirmos o mesmo impacto devastador dessa estreia. Felizmente que não o vi à noite, porque era provável que também me levasse o sono.

Um ano antes estreara The Day After, um telefilme semelhante mas feito nos EUA, e mais recordado no nosso país do que a “versão britânica”. Teve algum impacto considerável, mas Threads, com menos meios, conseguiu ultrapassar melhor o teste do tempo. E se em muitas coisas é completamente low-budget, todas as soluções utilizadas para disfarçar as limitações da técnica televisiva daquele tempo só contribuem para melhorar toda a tensão da narrativa.

Acredito cada vez mais que a verdadeira golden age da televisão aconteceu em duas fases: a primeira na mundialmente consagrada década de 50 nos EUA, e a segunda na década de 80, no Reino Unido. Se a revolução americana se fez mais nas brilhantes apostas criativas, a britânica apontou para novas linguagens, algum experimentalismo e uma quebra constante das convenções televisivas. O advento das grandes inovações da americana HBO no fim da década seguinte (com séries brilhantes como Sopranos e The Wire, ou as mais recentes Barry e Chernobyl) foi provocada por essa mudança de paradigma trazida pelas novidades europeias, e que há muito tempo que a TV dos states precisava, cujo público ficara acostumado a uma ligeireza e conformismo na maioria das produções (é um exemplo óbvio, mas vale a pena notar as diferenças entre as duas primeiras temporadas de Twin Peaks, produzidas no início de 90 para a generalista ABC – e já por si só controversas para a época -, e a terceira, feita em 2017 para o canal Showtime).

O pontapé de saída para todos os marcos posteriores que hoje estão nas bocas do mundo deu-se realmente nos oitentas, em que os espectadores britânicos viram audaciosas séries, minisséries e telefilmes que, se fossem feitos hoje, seriam remetidos para a televisão por cabo ou para os escombros das plataformas de streaming (porque nunca conseguiriam ser programas populares). Houve uma vontade de experimentar novas ideias, e o público também teve vontade de descobri-las (tanto que a maioria dos formatos emblemáticos dessa década não só se tornaram intemporais como foram vistos além-fronteiras – quem diria que uma série tão “lenta” e “parada” como Brideshead Revisited se tornaria num êxito global?).

Threads é capaz de ser mesmo o melhor exemplo dessa revolução implementada pela BBC e por outras marcas como a Granada e a ITV. É um filme que vai beber a The War Game, o trabalho que Peter Watkins fizera para a mesma BBC duas décadas antes, mas que fora considerado tão violento que não chegou a ser transmitido. Algo mudara para que, numa década já massificada por blockbusters ligeiros, os executivos da principal cadeia televisiva do Reino Unido quisessem agora apoiar e transmitir, num dia e hora em que as famílias estavam reunidas à volta da mesa, esta obra ainda mais poderosa e violenta. O programa deve ter caído bem com a sobremesa.

Talvez seja mesmo essa a razão: no meio de (já) tanta oferta, decidiram fazer a diferença – não é isto o verdadeiro serviço público? E para a História ficaram este e outros títulos que ainda hoje são maravilhosos: da mesma BBC recordem-se o magnífico The Singing Detective, e também Edge of Darkness – que também tem no pânico nuclear um dos seus leit-motifs. Convém não esquecer, claro, as grandes séries de comédia que também surgiram nesse período, como Yes Minister e Blackadder (esta última que, no seu último episódio, faz um desvio do humor para o drama com resultados surpreendentes).

Num estilo repleto de realismo e autenticidade, o telefilme não se inibe de mostrar todas as drásticas consequências da destruição nuclear, num tempo em que a Guerra Fria estava constantemente na ordem do dia. Não há finais felizes, nem saídas ao fundo do túnel. Senti que estava ali, perto daquelas personagens e de todo o caos. Se Threads ainda mantém este efeito de assombro constante, gostava de me sentir na pele de um dos muitos milhões de espectadores que acompanharam a sua estreia naquele domingo de 84.

E quanto àquela fastidiosa conversa sobre se “a TV é Cinema”, que actualmente existe porque, para a maioria das pessoas, o cinema faz-se tendo apenas mais meios para pagar a um melhor director de fotografia (e mesmo que muitas das novas séries, muito bonitinhas e perfeitinhas, não passem de telenovelas em menos episódios)? Já naquela altura era um assunto em alta, e as razões eram mais fundamentadas: nos extras do DVD de Edge of Darkness encontramos um programa de debate da BBC sobre a minissérie e o seu efeito-cinema, obtido não só pelo facto de estar muito bem fotografada e enquadrada, mas também porque esses elementos foram pensados de uma forma cinematográfica, e não apenas para encher o olho e encontrar um novo screensaver para o portátil. É que em 2019 pode ser muito fácil pegar numa câmara e filmar, mas é preciso mais do que isso para fazer alguma coisa de jeito. A pós-produção não resolve a falta de boas ideias.

A maior parte das pessoas, já acostumadas a ultra-altíssimas-definições, em que têm de distinguir todo e qualquer detalhe com a máxima resolução de imagem, torcerão o nariz a Threads e outros títulos britânicos que aqui mencionei, ou por terem sido rodados a 16mm (o que proporciona muito grão, incómodo para quem procura a imagem mais limpa possível), ou, heresia das heresias!, em vídeo, o que não permite sequer fazer nenhum upgrade para 4K, 8K ou 567K. Nesta era em que não vemos filmes e séries, mas “consumimos conteúdos”, é bom ter razões para voltar ao 4:3 e parar de negar o que de bom se fez no passado, e desanuviar do repuxo constante de novos “conteúdos” que todos dizem durante uma semana que é a next big thing, até que três dias depois, já ninguém se lembra que os viu.

Não há pureza nem artificalismo em Threads. Aqui encontramos um telefilme que não tem medo de ser sujo, desagradável, cruel, angustiante e pesado para os nossos sentidos. Mas o espectador moderno, que quer acreditar que a “época doirada” de algo se faz pela quantidade e não pela qualidade, provavelmente não quererá testemunhar toda a coragem que aqui foi inserida, patente em cada plano, diálogo, etc.

Gostava de ter coisas mais interessantes para dizer, mas quando me sentei ao computador para escrever isto, pensei que o resultado seria melhor. Como sempre, ficou muito aquém das expectativas. Quantos textos não quis eu levar para a frente mas que a tempo pude desistir, por falta de sumo que justificasse essas empreitadas? Enfim, se há alguma ideia a tirar destas linhas é que Threads vale mesmo a pena. E já agora, se um filme intensíssimo sobre o pânico nuclear não vos chegar, juntem à lista os clássicos Where the Wind Blows e Fail-Safe. Será uma sessão tripla que fornecerá doses garantidas de boa disposição e gargalhadas múltiplas para toda a família.

[este texto foi publicado originalmente no meu extinto blog Companhia das Amêndoas a 31/01/2019. Uma série de correcções e acrescentos foi feita para esta repostagem]

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